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A vida que flui

Por Heloisa Vasconcelos

Imagine esse cenário: você é adolescente, uns 15 ou 16 anos. Encontrou um namorado que pareceu o amor da sua vida, ― que amor não parece para a vida toda, quando se é adolescente? ― ou mesmo não usou preservativo com algum desconhecido em uma festa qualquer ― e quem não comete erros? Algum tempo depois, você se descobre grávida. O que sentiria, medo? Eu sentiria. Acharia que é o fim, um impasse intransponível?

Existem tantas brasileiras que vivem ou viveram concretamente a gravidez na adolescência em suas vidas, você nem imagina. Não é difícil encontrar, juro pra você. E cada uma delas traz consigo uma história, entranhada à maternidade. São histórias diferentes, de tudo que é jeito, mas que valem a pena serem escutadas. É um exercício que deveria ser diário, aliás, escutar histórias. Durante vários meses nos dedicamos a ouvi-las. De cada canto de Fortaleza, apareceu uma mãe com uma história diferente pra contar: gestações de risco, gestações tranquilas. Mulheres que receberam apoio, mulheres que não. Mulheres que lutam. Isto há de comum em todas elas.

A gravidez na adolescência, que seria um obstáculo, se revelou para algumas um trampolim, uma oportunidade de conseguir diversos ensinamentos. De forma fácil? Nem pensar. Mas um aprendizado que se tira de tudo isso é que a vida flui. Fluxo. Do dicionário, é o ato ou efeito de fluir, de se movimentar de modo contínuo. É a sucessão de acontecimentos, é uma grande quantidade de fatos, de ideias ou de ações. Da vida, é consequência.

É uma grande beleza da vida, essa mania que ela tem de fluir. De correr solta, independente de obstáculos. Como sangue que corre nas veias, esse mesmo sangue que transpassa mãe e bebê, unindo-os em um laço. Aliás, laço não. Laços se desmancham com muita facilidade, apenas com o puxar de uma ponta. Um nó, daqueles bem cegos. Daqueles que em uma vida toda não você não consegue desatar.

E de todas essas histórias, de todos esses ensinamentos, trazemos o Fluxos. As histórias de vida que nos foram contadas deixamos fluir.

Histórias de vida traçadas pela gravidez na adolescência

Introdução

Por Karoline Tavares

Bruna, 18, engravidou aos 17 de gêmeos. Rosane, 32, engravidou aos 15 e largou a escola na época. Andréa, 45, engravidou aos 17 e casou com o namorado. Berenice, 91, engravidou com 17 anos do primeiro dos 16 filhos. Apesar de não se conhecerem, as vidas dessas e de outras milhões de mulheres se entrelaçam pela gravidez na adolescência. De acordo com informações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil possui cerca de 16 milhões de adolescentes do sexo feminino e 549.529 delas são mães.

A realidade da gravidez precoce é tanto causa como consequência da violação de direitos humanos. É causa quando impossibilita as jovens mães de terem acesso à educação, à saúde de qualidade e à autonomia, direitos previstos na Convenção sobre os Direitos da Criança. É consequência quando essas adolescentes, por não terem acesso prévio a todos esses direitos, tornam-se mais vulneráveis à gravidez.

Em qualquer parte do planeta, os fatores que acarretam maiores índices de gravidez na adolescência são a baixa escolaridade e a baixa condição socioeconômica. Uma parte dessas garotas chega a nem ter acesso a métodos de prevenção sexual e/ou reprodutiva. Segundo cartilha do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), cerca de 20 mil jovens dão à luz, todos os dias, em países em desenvolvimento. Dentro deste total, 19% delas ficam grávidas antes dos 18 anos, e garotas menores de 15 anos são responsáveis por, aproximadamente, 2 milhões dos 7,3 milhões de partos feitos em menores de idade. Somente no Brasil, um em cada cinco bebês que nascem são de mães adolescentes, conforme estudo do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DATASUS). Em 2016, 431 mil crianças vieram ao mundo fruto de gravidez precoce no país. Os maiores índices são encontrados nas regiões Norte e Nordeste, que, juntas, possuem um terço do total.

De acordo com o UNFPA, o índice de fecundidade - estimativa do número médio de filhos que uma mulher pode ter até o fim de seu período reprodutivo - adolescente no Brasil, entre 2000 e 2010, passou de 86 para 75,6 em cada grupo de mil habitantes. Apesar da ligeira redução, esta taxa representa quase o dobro de outras partes do mundo, que têm índice médio de 48,9 para cada mil habitantes.

No Ceará, em 2017, de 46.789 partos realizados até o momento, 8.666 foram de jovens entre 10 e 19 anos, segundo informações divulgadas pelo Sistema Nacional de Nascidos Vivos (Sinasc). Já de acordo com a Secretaria de Saúde do Estado (Sesa), em 2016, o número total de mães adolescentes em Fortaleza foi de 36.508, menor índice dos últimos quatro anos (39.499 em 2015, 37.182 em 2014 e 36.844 em 2013).

Número de adolescentes grávidas no Ceará ao longo dos anos (2013-2016)

Número de adolescentes grávidas por regional em Fortaleza (2016)

EDUCAÇÃO E SAÚDE DE ADOLESCENTES GRÁVIDAS

O número de jovens que está fora da escola e do mercado de trabalho é grande. De acordo com levantamento realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o Ceará é o terceiro estado do Brasil com a maior quantidade de jovens entre 15 e 24 anos que não estudam nem trabalham, a geração nem-nem. A pesquisa leva em consideração indicadores como trabalho infantil, educação, saneamento básico e gravidez na adolescência.

A problemática gera uma série de violações dos direitos universais dessas meninas, sendo um deles a educação e a inserção no mercado de trabalho. Para o UNFPA, a inclusão desses direitos na vida das adolescentes pode reduzir marginalidades, aumentar a discussão desse assunto na sociedade civil, empoderar essas meninas no meio onde vivem e levar a uma transformação social gradativa. Segundo o Ipea, a evasão escolar entre mães adolescentes é considerada alta e o índice de entrada no mercado de trabalho é baixo. As informações revelam que 76% das brasileiras entre 10 e 17 anos com filhos não frequentam a escola e 58% fazem parte da geração nem-nem.

Na saúde, os dados também são preocupantes. De acordo com dados do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) de 2008, 70 mil adolescentes morrem todo ano nos países em desenvolvimento devido a consequências da gravidez e da hora do parto. Tais complicações são a principal causa de morte nessas garotas. O resultado de todas essas problemáticas é o enorme risco de vida que os filhos das jovens sofrem. O número de crianças nascidas mortas de adolescentes é 50% maior do que em mulheres mais velhas. Os bebês de jovens são mais propensos a nascer prematuros e com o peso abaixo do normal, e aproximadamente 1 milhão desses bebês morrem antes de completar 1 ano de idade.
 

POSSÍVEIS SOLUÇÕES

O relatório de 2012 do UNFPA afirma que a gravidez na adolescência é resultado do baixo investimento em políticas públicas para jovens mulheres, das desigualdades estruturais e das pressões sociais que as impedem de tomar uma série de decisões relacionadas a questões básicas de suas vidas, como saúde, educação, relacionamentos, comportamento sexual e casamentos. Nesse contexto, para prevenir a gravidez nessa fase, é fundamental que aconteça uma desconstrução a respeito de todas as questões citadas. E de que forma isso poderia ser feito? Seguem algumas saídas propostas pelo Fundo de População das Nações Unidas:

  • Incentivo à manutenção das garotas na escola, visto que a conclusão do ensino médio proporciona perspectivas de empregos mais rentáveis. Décadas de pesquisa têm mostrado que educação e escolaridade são fatores-chave não só para reduzir o risco de iniciação sexual, gravidez e maternidade precoces, mas também para aumentar a probabilidade dos adolescentes usarem preservativos e outras formas de contracepção se tiverem relações sexuais;

  • Investimento em programas de transferência condicional de renda, ou seja, pagamentos regulares às famílias para que elas tenham maior acesso aos serviços básicos de saúde, sexual e reprodutiva, ou cursos gratuitos de educação sexual e sensibilização;

  • Dar direito à educação sexual abrangente e apropriada para a idade, por meio de programas governamentais;

  • Investimento nas adolescentes que estão grávidas ou que já têm filhos, garantindo acesso aos cuidados com saúde, orientações de como cuidar do bebê e auxílio para retornar à escola, por exemplo;

  • Envolvimento de meninos e homens nas iniciativas, a fim de promover o debate e a compreensão acerca da igualdade de gêneros.

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DESCOBERTAS E APRENDIZADOS

Descoberta

Por Beatriz Carvalho

No período pré-vestibular, final do ensino médio, várias mudanças acontecem. Momentos marcantes, como a formatura, a despedida da escola e a decisão importante de que faculdade fazer. Tudo isso é parte significativa do amadurecimento dos adolescentes. Para Bruna de Sousa da Cruz Pinheiro, 18, o amadurecimento veio de forma diferente e em dupla.

Líder de sala, aos 17 anos, Bruna já havia decidido desde o vestido que usaria na sua formatura até a carreira que iria seguir. “Estava terminando meu ensino médio, com planos de fazer minha faculdade de nutrição, meu futuro já tava todo planejado, já tinha projeto para cinco anos e nada ia atrapalhar”, declara a jovem.

Em um relacionamento de 3 anos com seu atual marido, Patrick Pinheiro Soares Bulcão, 24, e mesmo ciente de que não estava fazendo uso de anticoncepcionais devido a problemas hormonais, ela não percebeu as mudanças acontecerem no seu corpo. “Então eu estava em outro mundo, porque era tanta coisa pra eu fazer que eu nem me lembrava de menstruação, de nada, porque tava tudo ao mesmo tempo”, comenta Bruna.

Na sala de estar de casa, onde mora com a mãe, o marido e os filhos, em meio a brinquedos espalhados, a moça relembra as discussões que já teve com a mãe por conta da gravidez. Não foi fácil para a mãe de Bruna, Maria Valquiria Xavier de Sousa, 52, aceitar quando recebeu a notícia. E tudo se complicou ainda mais depois da ultrassom que revelou que eram dois bebês. Esse fator potencializou ainda mais as preocupações da menina. “Eu ficava pensando, como é que eu ia cuidar de duas crianças… Assim, eu nunca tinha segurado um recém nascido, não tinha a mínima ideia, tinha vários medos.. Como é que eu ia amamentar duas crianças?”, declara.

As inseguranças fizeram com que Bruna, mesmo com o apoio do namorado, duvidasse da sua capacidade como futura mãe. Desde o início, portanto, ela deixou claro que não cuidaria das crianças sozinha, porque para ela era importante que seus filhos tivessem a figura de pai e mãe presente. Patrick assumiu a responsabilidade e deu as certezas que Bruna precisava. “Ele me disse: ‘a gente vai cuidar’”. E apesar da pouca experiência de vida e de não estarem trabalhando no momento, eles se ajudam, “E a gente tá cuidando”, completa Bruna.

O CORPO DA MÃE

Quando uma gravidez acontece na adolescência, é considerada de risco, pois o corpo da jovem não é totalmente apto à maternidade e seu sistema emocional fica muito abalado. A obstetra e fundadora da Maternidade Escola Assis Chateubriand (MEAC), Zenilda Bruno, explica que o crescimento ósseo da mãe, por ainda estar acontecendo, pode ser prejudicado, pois o cálcio que ela teria para o seu desenvolvimento está sendo usado para desenvolver o bebê. “Então esses alimentos que ela vai dar para o bebê são alimentos importantes também para ela no desenvolvimento dela”, complementa.

Apesar de ter descoberto a gestação tardiamente, com 3 meses, Bruna foi bem assistida clinicamente, e não teve complicações médicas relacionadas à gestação ou ao parto: “minha mãe era funcionária federal e eu era menor de idade, então entrava no plano de saúde dela, era tudo mais tranquilo”. As duas crianças, Davi Pinheiro de Sousa e Levi Pinheiro de Sousa, nasceram na Maternidade Antônio Prudente, no dia 19 de julho de 2016.

Mas essa não é a realidade de grande parte das adolescentes grávidas. Segundo dados da UNICEF, do ano de 2008, cerca de 70 mil adolescentes em países em desenvolvimento morrem anualmente de causas relacionadas à gravidez e ao parto. E complicações decorrentes da gravidez e do parto constituem as principais causas de morte de adolescentes mais velhas, segundo dados de 2012 da Organização Mundial de Saúde.

TEMPO PARA ACEITAÇÃO

O apoio psicológico é outra área que merece atenção quando fala-se de gestação precoce. Medos e inseguranças foram presentes na história de Bruna, desde o momento da descoberta, até a chegada dos filhos em casa. Pouco tempo depois de descobrir a gravidez, devido ao clima de tensão vivido com a mãe em casa, ela decidiu passar alguns meses na casa de uma amiga no Icaraí, em Caucaia, Região Metropolitana de Fortaleza.

Sem dinheiro e com planos de se casar, a jovem passou quase três meses trabalhando com uma amiga. “Lá minha gravidez foi super tranquila, não sentia nada, não parecia que tinha duas crianças e eu trabalhava lá… Ela me dava uma ajuda, 50, 100 reais dependendo da produção. A gente passava a semana trabalhando e final de semana eu ia para a casa da mãe do Patrick, passava o final de semana e voltava segunda”, recorda.

A decisão de sair da casa onde mora desde os cinco anos e ir para um lugar distante veio do receio que ela tinha do que as pessoas iriam falar, pois não queria chamar a atenção. Por esse mesmo motivo, Bruna deixou de ir a sua festa de formatura, apesar de ter trabalhado bastante para a sua realização. “No começo eu me privei de tudo, lá foi meu ponto de escape. As pessoas só foram saber da minha gravidez quando não dava mais para esconder. Eu precisei desse tempo, acho que até pra mim mesmo, pra eu entender o que estava acontecendo,  porque foi tudo muito de repente, tudo muito novo, e pra mim aceitar foi um processo”.

Durante o período, a moça não perdeu o contato com a mãe e, aos poucos, foi tudo se acertando. Com seis meses de gestação ela voltou para casa: “no Icaraí era longe, tinha medo de que acontecesse algo e não houvesse ninguém para me socorrer”. Quando retornou e depois que toda a vizinhança soube da notícia, Bruna se sentia mais calma, “já havia aceitado”, recorda aliviada.

DA MATERNIDADE AO LAR

Segundo a psicóloga da Maternidade Escola, Lorena Guimarães, a maternidade precoce

depende muito da história de cada adolescente. Ela destaca a responsabilidade que é

exercer o papel de mãe: “o que a gente observa é que ter essas responsabilidades antes

do tempo pode ocasionar coisas diferentes. Algumas têm depressão pós-parto, outras não

conseguem assumir as responsabilidades e passam para outro membro da família”, explica.

Mesmo com a certeza de que iria cuidar das crianças, Bruna reconheceu a realidade em

que se encontrava, e a adaptação foi difícil: “aqui sempre morou só eu e a minha mãe,

sempre fomos nós duas, aí de repente chega três homens… Foi assustador pra mim, quase

pego (sic) uma depressão pós parto, porque eu fiquei desesperada”,               declara com

seriedade e amadurecimento que o momento trouxe.

Em meio às lembranças dos primeiros dias, ela relembra da loucura que foi e fala que a

mudança de rotina foi impactante: “pra mim foi muito difícil esse primeiro momento, do

nada você parar de dormir, ter que limpar duas crianças direto e choro, e mamadeira (que eles não queriam), foi difícil”. Nesse momento ela pôde contar com a ajuda do pai das crianças, e da sua mãe, que se dividiam na tarefa de cuidar dos bebês.

Bruna acredita que o apoio e a ajuda de Patrick serão sempre lembrados por ela e pelos bebês. “Ele me ajudava porque sentia essa necessidade, porque ele sempre sentiu falta de um pai também, e eu digo sempre que nossos filhos sempre vão lembrar o que ele fez por eles”, afirma.

A cada fase do crescimento de Davi e Levi, Bruna aprende mais sobre ser mãe e vai superando as dificuldades pessoais. “Agora eles são pesados, já têm escolhas… Essa fase deles andando, comendo, tentando ser mais independentes, tá sendo mais difícil pra mim que a fase em que eu ‘dominava’ eles recém nascidos”, revela.

A VIDA AGORA

Brincando no sofá com o Levi e compartilhando suas histórias, Bruna relata nostálgica o quanto gostava de ter um tempo para si, nem que fosse como os momentos que passava na antiga casa do seu marido, onde convivia com várias pessoas. “Eu sinto falta de tempo para mim, gosto de me arrumar, de ter minha vaidade”, ressalta.

A mãe de Bruna conta que, quando criança, a jovem sempre dizia que teria filhos gêmeos. “Se eu soubesse, nunca tinha aberto a boca”, brinca. Apesar de terminar a frase lembrando do quanto a maternidade é um trabalho “pesado”, ela segue se esforçando “eu tenho a consciência que eu dou o meu melhor”, afirma. Ela planeja retomar os estudos quando sua mãe concluir o curso de tecnologia em gestão de qualidade que faz e se aposentar, e assim que os meninos começarem a frequentar uma creche, o que deve demorar no máximo dois anos.

Relembra ainda quando uma amiga lhe falou: “Bruna, acho que Deus pensou que se fosse só um era muito fácil para ti, ele colocou dois para ter um pouco mais de dificuldade”, e a resposta foi: “realmente, se fosse só um eu faria tudo normalmente”.

“Estava terminando meu ensino médio, com planos de fazer minha faculdade de nutrição, meu futuro já tava todo planejado, já tinha projeto para cinco anos e nada ia atrapalhar”

"Eu ficava pensando como é que eu ia cuidar de duas crianças… Eu nunca tinha segurado um recém nascido"

"A gente passava a semana trabalhando e final de semana eu ia para a casa da mãe do Patrick, passava o final de semana e voltava segunda.”

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COMPLICAÇÕES

NA GRAVIDEZ

Pré-natal

Por Heloisa Vasconcelos

O ano era 2000. Rosane Virgulino, 32, tinha apenas 15 anos

quando conheceu seu primeiro namorado logo ali, no campo de futebol ー ela sempre gostou de jogar bola ー em frente à casa em que mora até hoje, no Autran Nunes. Namorou, engravidou, casou. Em setembro de 2001, estava grávida de quatro meses e foi coagida a casar pela mãe, para evitar que ficasse conhecida como mãe solteira pela vizinhança.

"A minha vida sempre foi muito bagunçada, muito intensa, muito cheia de percalços, mas o que me marcou mesmo foi essa história de engravidar adolescente”,        é o que ela diz logo no início da entrevista. A história que consegue contar hoje com um sorriso no rosto não segue às regras ditadas pela sociedade.

Como Rosane, 12% das brasileiras de 15 a 19 anos trazem em suas vidas o fator da gravidez na adolescência em comum, segundo dados do relatório de 2013 do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA). Um dos principais agravantes deste são as complicações que esta pode trazer, tanto para a mãe, quanto para o bebê. Uma pesquisa da Revista Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia de 2011 mostra que as adolescentes têm 75% mais risco de ter parto prematuro que as mulheres adultas.

Nessa situação, um pré-natal de qualidade pode ser um divisor de águas, decidindo entre vida e morte da adolescente e do seu filho. “O grande problema é ela ter, por exemplo, uma doença que não foi tratada no início da gravidez. É importante que a gente possa diagnosticar o mais precoce possível qualquer complicação para evitar um desfecho desfavorável, ou seja, uma morte desse bebê”, justifica a professora de medicina da Universidade Federal do Ceará e coordenadora do serviço do adolescente da Maternidade Escola Assis Chateaubriand, Zenilda Bruno.

O pré-natal consiste em uma série de visitas que a mãe, de qualquer idade, deve fazer ao médico, com uma frequência mensal no primeiro trimestre da gravidez, quinzenal no segundo e semanal no terceiro. Durante este período, são feitos diversos exames para identificar doenças na mãe que podem afetar a gestação, além de analisar o desenvolvimento do bebê.

No entanto, diversos fatores se colocam entre a mãe adolescente e o serviço de saúde. Seja por uma necessidade de esconder a gravidez até onde for possível, seja por grandes filas nos postos de saúde para conseguir exames básicos, muitas adolescentes começam seu pré-natal muito tardiamente.

A HISTÓRIA DE QUEM PASSOU POR ISSO

Quando Rosane começou o pré-natal, ela já estava no quarto mês de gestação. Os exames começaram apenas depois que ela se casou, afinal, ninguém podia saber que ela engravidou solteira.O atendimento que recebeu se resumiu a duas consultas e um exame de sangue, cujo resultado ela sequer teve oportunidade de mostrar ao médico antes do filho nascer. A bolsa estourou enquanto ela estava no posto de saúde, esperando atendimento.

A ultrassom, que deveria ter sido feita no primeiro e no terceiro trimestres da gestação, não foi realizada. “A gente orienta para a atenção primária que as gestantes são priorizadas, elas devem ser priorizadas, porque cada trimestre da gravidez é uma ação que esse profissional deve fazer pra assistir essa mulher com qualidade”, explica a coordenadora da área técnica de saúde da mulher da Secretaria Municipal de Saúde de Fortaleza, Lea Dias. Rosane, no entanto, não fez o exame devido à demora do SUS. Este fato trouxe complicações ao parto da adolescente.

A gravidez foi só uma das coisas que a adolescente teve que esconder. Casada com alguém que ela conhecia apenas superficialmente, passou fome e sofreu agressões físicas. “Eu emagreci, era tão magra que as pessoas não notavam que eu estava grávida. E, além de tudo isso, tinha que manter as aparências, para esconder do meu pai, esconder da minha mãe, ter que ir para a escola porque eu não queria perder meus amigos, que eram a única coisa que eu ainda tinha”, confessa.

Rosane passou grande parte da gestação escondida em casa, fugindo também dos comentários dos vizinhos. “Às vezes eu apanhava até calada para a vizinhança não ouvir. Eu usava roupa comprida porque ficava marca nas pernas e nos braços. Porque eu não queria dar satisfação. Eu não queria ver o pessoal olhando pra mim com aquele sentimento de pena”, disparou.  

Por causa das agressões, do parco atendimento médico e da má alimentação, que a deixou anêmica, seu filho nasceu prematuro de apenas seis meses. Esse é o período da gestação em que grande parte do sistema nervoso do bebê está se desenvolvendo. Consequência desta quebra, André Virgulino ainda hoje, com 15 anos, encontra limitações em sua coordenação motora.

DO NASCIMENTO PRA FRENTE

Por não não ter feito nenhuma ultrassom, Rosane só descobriu o sexo de seu filho na sala de parto. Ele não teve direito a chá de bebê, enxoval azul e nem mesmo um nome antes disso. “Assim que ele nasceu o médico só disse ‘olha mãe, é menino mas você não vai poder ficar com ele’. Não vi meu filho, só sabia que era menino”, lembrou. Seu trabalho de parto durou três dias.

Ainda que sorridente durante toda a entrevista, lágrimas fugiram de seus olhos ao recordar o primeiro encontro com seu filho, mesmo depois de 15 anos do acontecimento. “É complicado você passar menos de seis meses com um bebê na barriga, ele nascer e você simplesmente não saber quem ele é. Aí eu vi lá ele com a cabeça raspada, injeção pra tudo que é lado, cheio de veia, cheio de curativo, cheio de sonda,

aquela coisa pequenininha… Não poder pegar,respirando com dificuldades… É uma

coisa que eu acho que eu nunca vou esquecer”, compartilhou.

Andrézinho, como ela chama carinhosamente, passou três meses na incubadora, pe-

ríodo em que Rosane precisou abandonar os estudos para acompanhá-lo de perto.

Com a idade que ele nasceu, havia risco de vida. “O fato de ele ter mais de 32 se-

manas,é uma faixa que ele tem mais possibilidades de sobreviver”, explica a profes-

sora de medicina, Zenilda Bruno. André nasceu apenas com 24 semanas.

Após sair, ele precisou de fisioterapia, remédios e acompanhamento médico até os

sete anos para desenvolver sua coordenação motora. “O médico disse ‘mãe, ele já

não iria andar, é um milagre ele estar andando. Então ele vai andar do jeito dele.

Vamos parar por aqui, não temos mais o que fazer’ e eu ‘tudo bem doutor, tô satis-

feita, meu filho anda, pra mim tá de bom tamanho’”, recordou-se. Até os dois anos de

idade, seu filho não conseguia andar.

 

O QUE ELA QUERIA ANTES E O QUE QUER AGORA

Antes da gravidez bater à sua porta, Rosane tinha uma visão muito diferente do mundo. Pretendia ter três filhos, imaginava que a vida seria fácil. Movida pelas aulas de literatura do seu tempo de escola, sua maior paixão na época, tinha planos de entrar na universidade. “E eu tinha vontade de fazer faculdade de letras, mas a gravidez prematura, o parto prematuro mudou completamente meus planos. Então o meu único plano era sobreviver”, lamenta.

Ela continuou os estudos enquanto estava grávida, abandonando-os apenas por causa do parto prematuro. “A escola para mim era também uma maneira de fuga, porque a minha vida real era muito cruel”, expôs. Dos arrependimentos da vida, não toma a gravidez como um deles, mas sim o casamento precoce. Critica a cultura que lhe foi passada, de que “engravidou, casou. Casou tem que manter. E se se separar é puta”. Apesar disso,agradece o apoio da mãe, dizendo que, sem ela, não teria como hoje contar sua história de queixo erguido.

Pretende voltar para a faculdade, assim que tiver uma situação financeira melhor e quando seus filhos ー André, de 15 anos e Ana Luisa, de 5 ー estiverem mais velhos. No entanto, o sonho agora é outro. Pensa em fazer um curso técnico, arranjar um emprego melhor e cursar serviço social. “Eu acho que é uma forma de ajudar as pessoas com base no que eu vivi”, conta, orgulhosa de tudo que conseguiu aprender na vida.

“Assim que ele nasceu o médico só disse ‘olha mãe, é menino mas você não vai poder ficar com ele’. Não vi meu filho, só sabia que era menino”

"Tudo bem doutor, tô satisfeita, meu filho anda, pra mim tá de bom tamanho"

"A gravidez, infelizmente, interrompeu esse ciclo. Eu não tive adolescência."

Uma história de vida traCada pELA

CORAGEM DE AMADURECER

Família

Por Sâmia Martins

A gravidez é um período especialmente delicado na vida de

uma mulher, principalmente nos cuidados com a saúde. O momento exige maior atenção ainda quando acontece no fim da infância ou na adolescência. Diante disso, a relação da jovem grávida com a família faz toda a diferença durante a gestação, principalmente pela situação peculiar de desenvolvimento característico dessa fase da vida.

Andréa Lúcia Falcão Sampaio, 45, precisou ter a coragem de amadurecer cedo quando enfrentou, em 1990, praticamente sozinha aos 17 anos, a gestação da sua filha Amanda. Experiência pela qual passaria novamente, três meses depois após dar à luz ao seu segundo e último filho, Ramon. Aprender a “se virar” foi uma atitude necessária, mesmo com o apoio do pai dos seus dois filhos, Francisco Sampaio Júnior. 

Hoje, vive em um apartamento na Cidade dos Funcionários apenas com o filho e a cachorra Mel, mas na época da gravidez precoce morava em um condomínio no bairro Aldeota com a mãe, Dona Melania, e a irmã, Ana Maria. Contudo, sem o apoio da família, teve que tomar importantes decisões por ela mesma.
Cursando, na época, o primeiro ano do ensino médio no colégio Farias Brito, saiu da escola e vendeu todo o material e a farda para uma colega. Com três meses de gestação, casou-se com Francisco, que namorava há cinco anos, e com ele permaneceu durante os 19 anos seguintes. O marido tinha um plano de saúde que cobriu todos os custos das consultas e exames, mas ela foi sozinha fazer todo o pré-natal, no Hospital Gênesis, também na Aldeota.

A assistente social Verbena Sandy, que atende na Maternidade Escola Assis Chateaubriand (MEAC) - unidade de referência nacional em casos de gravidez na adolescência pelo Ambulatório da Adolescente criado há 30 anos -, afirma que a falta de apoio familiar e do pai da criança, no período da gestação, pode implicar em diversos riscos psicossociais, ocasionando pensamentos que podem resultar em atitudes como o aborto, o abandono da criança e maus tratos. “Quando a gravidez não é planejada, nem desejada, esse impacto é grande; inclusive com sintomas depressivos, de ansiedade, muitas vezes a insegurança, o abandono escolar”, descreve. 

DIFICULDADES

Depois de casada, Andréa começou a construir a vida com o marido, mas teve que enfrentar muitas dificuldades. “Quando eu me casei nós não tínhamos casa, não tinha teto, não tinha nada”, lembra. Ainda em 1990, moravam juntos no antigo apartamento de Dona Melania, mas no mesmo ano, depois de uma promoção do marido no trabalho, alugariam uma casa temporária na Serrinha onde a família residiria até 1993. Enquanto isso, a moça teve que aprender na marra como cuidar de si, de um casamento, da casa e do bebê a caminho. Na falta das orientações e da presença da mãe, que permaneceu distante no período da gravidez e durante os cuidados com a criança, a saída que encontrou foi recorrer à vizinhança.

No entanto, diferente da situação de Andréa, Verbena Sandy enfatiza que o apoio e o auxílio da família é fundamental para uma adolescente grávida, principalmente com relação à gravidez não planejada - o caso de muitas dessas jovens. “É importante, inclusive, para que a adolescente não abandone a escola. O cenário ideal é ter alguém que possa auxiliar, não tomar o lugar dela de mãe, pois não tem como abrir mão desse espaço de cuidado”, complementa a assistente social.

Andréa também passou por uma gravidez considerada de risco, pois teve pré-eclâmpsia, que se caracteriza por pressão alta com convulsão. Assim, precisou ter precaução redobrada, evitando até viajar para a casa da ex-sogra que mora em Quixadá. A doutora em ginecologia, Zenilda Bruno, que coordena o Ambulatório do Adolescente na MEAC, informa que a complicação também pode levar à morte. “A eclâmpsia ocorre mais frequentemente nos extremos da vida reprodutiva, ou seja, na adolescente e na mulher acima de 35 anos”, exemplifica a médica. 

No dia do parto, as contrações começaram às duas da madrugada daquele 12 de setembro. Entre várias idas e vindas ao hospital na companhia do marido, após 16 horas em trabalho de parto, os médicos descartaram a possibilidade de um parto normal e iniciaram a cesárea por volta das 18h.              Por conta da proximidade e das complicações do recente parto da irmã, Ramon também precisou nascer por meio de cesárea, só que a situação aconteceu com mais tranquilidade porque o procedimento foi agendado. 
 

SEXUALIDADE

Doutora em enfermagem, com especialização em enfermagem obstétrica e obstetrícia social,

Maria Inês Brandão Bocardi aborda, no seu livro “Gravidez na Adolescência”, a importância

da orientação familiar no início da vida sexual das adolescentes. A especialista defende que

“as primeiras relações sexuais não serão programadas e sim imprevisíveis, se não houver

desde a infância entre a família e a adolescente diálogos constantes, carinhosos, de olho no

olho”. 

No entanto, análises feitas por profissionais da saúde, em geral por meio de artigos e pes-

quisas  acadêmicas, revelam que os pais ainda não sabem o quê e como abordar o tema

dentro de casa, tratando de forma superficial - falando apenas sobre preservativos - e criando,

muitas vezes, uma barreira de silêncio com os filhos que acabam buscando outras fontes

de informação, geralmente na figura de amigos.

No caso de Andréa, que perdeu a virgindade aos 14, conversar com a mãe ou a irmã não foi uma opção, já que ela sentia que “não tinha abertura pra isso”, então falava do assunto apenas com amigas. “Quando eu comecei a ter relação sexual com ele [futuro marido] tudo era por vontade, por instinto mesmo, eu não tinha muita noção do perigo de uma gravidez, eu não tinha aquele cuidado, aquela orientação de tomar um remédio, de usar um preservativo”, relembra. Embora o casal não utilizasse nenhum método contraceptivo, ela não considera que a prática foi prejudicial.

A diminuição do uso de preservativos por jovens é uma preocupação governamental. A pedido do Ministério da Saúde, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) levantou dados de adolescentes em idade escolar, de 13 a 15 anos, que disseram ter tido relação sexual alguma vez na vida. Entre 2012 e 2015, caiu de 75,3% para 66,2% o número de jovens que afirmaram usar camisinha na última relação sexual. 

 

FAMÍLIA

Filha caçula de quatro irmãos, Andréa agora lembra com saudade dos pais que já partiram. Seu pai, José Pompeu Gomes de Matos, morreu de enfisema pulmonar quando ela tinha 11 anos, mas ainda lembra dele com carinho. Já a mãe se foi há quatro anos, após desenvolver sepse, uma infecção generalizada, e demonstra ter saudade e guardar afeto por ela. 

Embora não guarde mágoas, a moça lamenta não ter tido um relacionamento tão próximo com a mãe, o que distanciou a relação, principalmente depois da descoberta da gravidez. Dona Melania, que à época tinha 61 anos, ficou chateada quando a filha contou sobre a gravidez, mas não chegou a brigar nem a reclamar. No entanto, Andréa reconhece a insatisfação da mãe nas atitudes que demonstrou dali por diante, como não ir nas consultas da filha, não comparecer ao casamento, não orientar sobre os cuidados com o bebê e não ajudar na criação dos netos.

Hoje, Andréa não recorda das dificuldades de maneira negativa, pois cativa com orgulho as realizações da família que construiu. Amanda cursa Ciências Contábeis, trabalha como assistente contábil e namora há cinco anos. Ramon faz Engenharia Civil e trabalha com o pai com equipamentos pesados de oficina mecânica; também está um relacionamento há cinco anos e mora com mãe. Após um relacionamento de 24 anos entre namoro e casamento, Andréa e Francisco Sampaio Júnior se separaram em 2009, mas ainda moram no mesmo prédio, em apartamentos diferentes, e mantém uma relação de carinho de amizade. Ela namora, ele é casado.

"Foi um parto difícil que eu passei 16 horas em trabalho de parto, não tinha passagem pra ela, teve que ser cesariana."

"No cartório ele chamou os dois ajudantes pra ser testemunhas, assinamos papel, tiramos duas fotos e ele foi continuar o dia de serviço e eu fui pra casa."

"Eu não conversava com ninguém da minha casa. Até que demorei foi muito, porque perdi a virgindade com 14 anos, engravidei com 17."

Uma história de vida traCada pELO

TEMPO

Perspectivas

Por Suzana Mesquita

Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), uma

pessoa é considerada criança até os 12 anos e adolescente a partir dessa idade até os 18. Para Berenice Camelo, de 91 anos e moradora do Bairro Antônio Bezerra em Fortaleza, sua infância só começou aos 16, quando casou-se com Augusto Camelo, que tinha 23 anos na época, em 1942. Antes disso, viveu uma vida muito sofrida que não gosta de pensar como uma infância.

Foi dada pela mãe, que não tinha condições de lhe criar, a um casal que também não tinha boas condições financeiras. Morava no Sítio Valentim, em Santa Quitéria, na propriedade de seu tio adotivo, Manuel Pinto. Antes dos 16 já trabalhava com a mãe em uma barraca localizada dentro da fazenda do tio, onde vendiam comida para os operários. E foi nessa barraca que conheceu o seu marido, o “primeiro e derradeiro”, segundo ela.

O noivado aconteceu por intermédio do tio, que percebeu o interesse de Berenice no rapaz e resolveu contar para o seu pai adotivo, Augusto Pinto. No início ele foi contra porque Augusto era um “cassaco”, um simples operário, que não tinha muito a oferecer. Com a insistência de seu irmão, o pai  aceitou que sua filha se casasse. Na época, Augusto era noivo de Mariazinha, o que não foi um empecilho para Berenice. “Se quem é casado se acaba, imagine o noivado”, disse ela. Ao chegar na cidade vizinha onde sua ex-futura noiva morava, Augusto entregou uma carta para que seu pai entregasse à ela, avisando que estava noivo de outra e que não se casaria mais com Maria.

Depois daquele dia, a vida de Berenice começou a mudar. Casou-se no mesmo ano, e a festa aconteceu em sua nova casa, onde passaria alguns anos antes de morar em Fortaleza. “Casamos uma hora da tarde. Foi tanto amigo, tanta gente… Depois do casamento meu pai deu um jantarzinho, meus parentes ajudaram. Meu tio que morava pertinho meu deu o sapato, as meias, o vestido, tudo muito bonito. Eu lembro até do vestido”.          Pouco tempo depois de completar 17 anos, engravidou e teve sua primeira filha.

Para Dona Berenice, sua primeira gravidez aos 17 anos significou diversas coisas: o início de sua trajetória como mãe, um passo na história dela com Augusto e até o começo de sua juventude. O fato dela ter engravidado antes dos 18, porém, não significou nada.

O QUE DIZEM OS DADOS

Segundo o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 1940, 16,1% dos nascidos vivos eram filhos de mães adolescentes. O resultado não é muito menor comparado aos resultados de 2010, no qual a proporção de filhos de mães adolescentes pelo número de nascidos vivos chega a 19,3%. Mesmo com uma proporção inferior na década de 40, a grande diferença entre a gravidez na adolescência naquela época e nos dias atuais é a forma como a sociedade passou a ver esse tipo de acontecimento.

Segundo o antropólogo Dr. Martinho Tota, diferentes fatores se relacionam com essa mudança na visão da gravidez na adolescência. Um deles foi a industrialização e maior alcance das mulheres ao mercado de trabalho, influenciado também pelas lutas feministas: “a maior presença da mulher no mercado de trabalho, isso como consequência de um maior investimento de tempo, de energia na escolarização, se reflete na maneira como se concebe essa problemática da gravidez na adolescência”. Ele também fala que, com um maior acesso de algumas mulheres à educação e ao mercado de trabalho, elas passaram a utilizar uma maior parte do seu tempo dedicando-se aos seus estudos, adiando o plano de casamento e gravidez, que passou a ser algo secundário em suas vidas. Outro fator que deve ser levado em conta é a mudança na percepção de infância e adolescência que sofreu diversas transformações ao longo do século, tanto sociais quanto políticas.

NOÇÕES DE ADOLESCÊNCIA

Antes da criação do ECA, em 1990, não existia nenhuma lei que tratasse sobre direitos fundamentais de crianças e adolescentes no Brasil. Tanto o código Mello Matos de 1927 como o Serviço de Assistência ao Menor (SAM) em 1942 eram focados em políticas repressivas focadas em menores infratores. Isso se dá, em grande parte, pela noção de infância e adolescência que vai sendo alterada ao longo do século XX.

No período medieval, a noção de desenvolvimento psicológico não existia; as crianças

eram vistas como pequenos adultos, possuindo a mesma capacidade mental. Segundo

a pesquisa da letróloga Dr.ª Clarice Zamonaro, a infância na Idade Média terminava

quando o bebê era desmamado. Essa noção permanece durante a época da indus-

trialização, na qual as crianças eram vistas como mão-de-obra assim como os adultos.

Já o conceito de adolescência simplesmente não existia. Haviam etapas na vida da

criança que simplesmente a transformavam em um adulto.

Segundo o antropólogo Dr. Martinho Tota, para as meninas, a gravidez era uma impor-

tante parte dessa etapa: “a passagem da infância à vida adulta não coincidia com uma

fase da vida delas, mas sim com um estado civil. A partir do momento que ela se casa-

va ela se tornava uma esposa, uma mãe, uma mulher”.  No entanto, apesar de serem

vistos pela sociedade como adultos, os adolescentes são indivíduos que ainda estão

passando por diversas mudanças. “A adolescência é um momento de preparação em

termos existenciais, biológicos e educacionais para a vida a adulta”, ele afirma.

Enquanto contava sua história, sentada em sua cadeira de balanço, Dona Berenice não

se viu, enquanto revivia sua vida, como uma adolescente. Foi muito cuidada desde sempre. Quando criança, pelos pais adotivos - Berenice conta que sua mãe lhe balançou até o dia do seu casamento - e quando mulher por Augusto, que segundo ela sempre foi um pai presente e marido atencioso. Mas nunca foi cuidada como uma jovem que passava por mudanças físicas e psicológicas, muito menos como uma jovem que carregava outra vida dentro de si, o que lhe trazia mais receios.

O medo na hora do parto sempre prevalecia. Afinal, um momento tão complicado que deixa muitas marcas em mulheres adultas não passaria de forma simples por uma adolescente. “Pra mim eu só morria se fosse parto. Me valia muito de São Francisco das Chagas, aí quase todos [filhos] são Francisco, e a filhas todas são Maria, porque eu tinha medo”, conta ela.

 

PASSADO E PRESENTE

Lembrando sempre do passado, Berenice conta que, hoje em dia, não aceitaria se uma filha adolescente sua aparecesse grávida. Compara os dias de hoje com seu tempo, no qual os filhos obedeciam mais os seus pais. Morando com cinco filhos e diagnosticada com ansiedade, fala diversas vezes que gostaria muito de voltar a morar no interior, onde talvez, para ela, a vida se pareceria mais com o que era a quase um século atrás.

Em seus mais de 90 anos de vida, o passado lhe chama e lhe pega pela mão com um saudosismo notável. “Eu era tão cheia de vida, me arrumava, saia, andava com as minhas filhas, pensavam que eram até minhas irmãs. 90 anos, a vida é muito pesada.”  Com um sorriso em seu rosto, conta da melhor fase da sua vida, quando morava no interior com Augusto e tinha filhos todos os anos, que enchiam a casa de alegria. Fase em que viveu, segundo ela, sua verdadeira infância, sendo uma mãe adolescente.

"Eu já tava casada, com um ano eu já tive a primeira [filha]. Fiquei foi feliz, aí não me faltava nada."

“Pra mim eu só morria se fosse parto. Me valia muito de São Francisco das Chagas, aí quase todos [filhos] são Francisco, e a filhas todas são Maria, porque eu tinha medo”

“Eu acho que a maioria das misérias que acontecem nas famílias é porque [os filhos] não obedecem às mães."

Equipe Fluxos

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